Um ser que posso ser eu
Autoretrato, auto representação: domínios de um Eu real ou ficcionado?
Sinopse:
Um ser que posso ser eu é um projecto iniciado em 2021, que congrega um conjunto de imagens e de textos que constituem reflexão sobre a sua prática artística e, sobre o auto-retrato, em particular. Parte desses textos, foi integrada no sítio da internet da autora (www.carladesousa.com) como forma de aproximação às imagens aí dispostas, oferecendo um contexto para a sua observação a partir das suas motivações e constituindo, no seu todo compósito ([1]) – imagem e texto –, um objecto virtual de interpretação do seu trabalho. Assim como as imagens, também os textos são escritos na primeira pessoa.
Abstract:
Someone that can be me is a project started in 2021, which brings together a set of images and texts that constitute reflection on the author’s artistic practice and, on the self-portrait, in particular. Part of these texts were integrated in the author’s website as a form of approximation to the images displayed there, offering a context for observation from her motivations and constituting, in its composite whole – image and text – a virtual object for the interpretation of her body of work. Like the images, the texts are also written in the first person.
Começo por citar um verso de Sophia de Mello Breyner, do qual me interessa o paralelismo dos processos criativos, na escrita e na imagem que a poetisa tão bem sintetizou no seu poema “A Escrita”:
«Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital. Mas a escrita exige solidões e desertos. E coisas que se vêem como quem vê outra coisa.»([2])
O meu processo criativo, não é alheio nem às «solidões», nem aos «desertos». E, tento, observar as coisas e observar-me «como quem vê outra coisa». Essa circunstância, sem que nada o fizesse prever, atenta a minha natureza eminentemente introvertida, talvez explique a razão porque, num dado momento da minha história pessoal, me embrenhei nas teias do auto retrato.
O auto retrato é, para mim, um assunto que me ocupa, num modo sério de me conhecer, enquanto ser único e, de modo reflexo, conhecer os outros, como seres igualmente únicos, tentando não enveredar em estereótipos e juízos de valor; exploro-o, em exercícios quase quotidianos, persistentes, latentes a toda a realidade que me rodeia e que integro na minha prática fotográfica, buscando as minhas alteralidades ou as minhas possibilidades de ser eu com o outro.
Não deixa de existir, por assim dizer, uma espécie de pacto autobiográfico nas imagens que crio, na medida em que sou eu o objecto retratado e aquele foi um momento que vivi. E é um facto que procuro respeitar o meu corpo com os seus sinais e as suas memórias inscritas: sou-lhe fiel: são “eus” nos quais me revejo, ainda que, por breves instantes de luz, predisposição, imaginação ou fantasia. Sem que me ocupe da verdade, seja ela o que for.
Constato que me fotografo para “falar” na primeira pessoa, mas as imagens não “falam” só de mim ou não “falam” necessariamente de mim. Pelo menos, assim o espero. Mostro, revelo, exponho, escondo, exibo um corpo, um rosto que, sendo o meu, busca um eco que o transcenda e que o faça perder essa identidade, nas sensações e nos pensamentos que provoca ou suscita a quem o observa. Ou seja, procuro no reconhecimento do outro a sua transformação noutra coisa para além do corpo exibido.
Talvez eu busque o espelho: somos espelhos uns dos outros, mas devemos estar cientes que os espelhos não nos devolvem apenas o nosso reflexo: antes do reflexo, o espelho mora na nossa cabeça. E é com essa que fotografamos. Por isso, fotografar-me, não implica apenas despir a roupa com que cubro o meu corpo. Implica, também, e sobretudo, desconstruir ideias, pensamentos, preconceitos, ver para lá do visível, tremer no lugar frio, observar-me na perspectiva do outro, distender o corpo, não recear a vulnerabilidade, confiar, repetir, insistir, olhar de novo, e outra vez, procurar o reflexo do outro e ir.
Este exercício, para alguns superficial, e que poderá ser apelidado como narcísico e egocêntrico, assume, para mim, um propósito de auto-conhecimento, de partilha e busca do reconhecimento do outro, no território íntimo que defini para a minha prática artística. Prática essa, que não é alheia aos tempos que vivemos, às evoluções tecnológicas que nos vão ultrapassando, aos eventos que não controlamos e que nos são impostos, a trabalhos de outras artistas que observo e que me tocam, ao mundo e às pessoas que me rodeiam, aos próprios objectos que com tais imagens crio, sejam estes livros, estudos, maquetas ou peças únicas. Ou seja, existe permeabilidade da realidade em que me inscrevo nesta minha linguagem: o que venho desenvolvendo, neste domínio, respira e exala o tempo e o espaço em que vivo e o ser que sou.
As imagens que crio, essas, são a minha linguagem primordial. Através delas conto a minha história, neste tempo, neste espaço e nesta condição feminina que recebi, assumindo o controlo da narrativa e do modo como ela é oferecida ao outro. O que significa que o meu discurso artístico, embora oferecido ao voyerismo do outro, não resulta do olhar ou reflexão de outrem sobre mim.
Regressando a Sophia, e à escrita, concluo que também eu escrevo, não com letras e palavras, mas antes com imagens que se enchem – assim o espero – de palavras e sentimentos do lado de quem as vê.
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[2] Sophia de Mello Breyner Andersen, Obra Poética III, Lisboa: Caminho, 1990, pág. 328.