Interstícios, influências e afinidades

Escrevo, ao som de Glass de Hania Rani (Edja), pianista e compositora polaca que me acompanha em muitos dos meus momentos reflexivos. A referência é importante por que o texto seria certamente outro se ouvisse, neste momento, qualquer outra obra musical. A cadência, o ritmo, a sonoridade, a clareza e pungência de cada nota, consigo-a perceber no ouvido, mas também no impacto dos meus dedos no teclado do computador e na ressonância da melodia no meu corpo inteiro, como se me impelisse às palavras que flutuam no meu pensamento e que traduzo aqui, na forma escrita.
Seria, também outro o meu olhar e, bem assim, o resultado do meu processo criativo, se estes não estivessem povoados, mesclados, imbuídos, impregnados com tantas e tantas referência e obras artísticas de mulheres, de todos as raças e crenças, que todos os dias me inspiram e me dão a palavra, o acto, o gesto, a imagem e, sobretudo, a coragem de ser mulher. E aqui, começa o som de Edja, um dedilhado afirmativo de Hania cujo ritmo urgente se assemelha a alguém a bater à porta à espera de entrar.
Podem perguntar-me se não aprecio artistas masculinos e a minha resposta é, e será sempre, afirmativa. Não me fecho à(s) influência(s), à(s) epifania(s) ou ao(s) arrepio(s) que algumas obras assinadas por autores homens, imprimem na minha experiência humana. Contudo, vejo-me forçada a concluir que, são as mulheres que, pessoalmente, me fazem querer ver diferente e seguir por outro caminho, numa evidente e assumida fuga ao “male gaze” que, devo deixar claro, também se encontra em muitos trabalhos artísticos de autoras mulheres.
As imagens são uma forma de pensar. Pensar é também uma actividade visual. É assim que processo muito do meu pensamento. De forma visual. E é assim que todos nós assimilamos outras realidades que às vezes não se traduzem em palavras.
Seria outro o meu pensamento visual, se não me inspirasse na minha vivência pessoal, na minha experiência humana do mundo, dos outros e do que me rodeia, se não actuasse de acordo com princípios humanistas e feministas, e, não tivesse esta irredutível noção da importância da diversidade de género nas narrativas do mundo. Aqui, voltando à referência musical inicial, senti o abrupto final de Now, Run da Hania, talvez premonitório do que sinto ou percepciono da parte de alguns e algumas de vós.
Alguns segundos depois do fim abrupto, iniciam-se os primeiros acordes de Alberto de Hania (On Giacometti). Esse momento recentra-me: pertenço a uma geração que, no espectro ocidental, entenda-se, não pode deixar de se considerar privilegiada: a última a ter a voragem de todos os sentidos na pele, antes deste movimento de desmaterialização virtual da experiência humana que, avassaladoramente, e nas últimas décadas, nos engole os dias e as noites. Mas também pertenço a uma geração que ainda busca o toque, o outro, o horizonte e a realidade para se sentir viva e cumprir o seu propósito. Uma geração que se (re)encontra na fronteira, no interstício entre uma coisa e outra. Uma entre passagem entre dois mundos que ainda se tocam.
Penso a partir de imagens, o toque do outro, que quero e desejo real. Seria uma boa súmula deste meu dia, que para muitos é dia de carnaval.
Sedimentos, 4 de Março de 2025, Carla de Sousa