Breve ensaio sobre Paisagens Interiores

do estudo e do processo de arquivo

haiku

1. Territórios > Cartografia > Geografias > Topografias

Há cerca de onze anos, a fotografia era, para mim, um exercício mecânico de clicar no obturador e registar o que me rodeava: a máquina fotográfica era, no início deste meu percurso, um instrumento e as fotografias, documentos visuais que atestavam a realidade que existia ao meu redor, de cujos detalhes eu me inteirava, com fascínio, mas também com atenta perseverança.

Esse exercício que, agarrei com paixão inusitada, conduziu-me, por espaços vazios que, paulatinamente, fui humanizando: do espaço vazio, fiz corpo e do corpo, fiz intimidade.

Não posso deixar de falar da dimensão eminentemente terapêutica, que a fotografia assumiu no meu caminho pessoal: a fotografia, o olhar contemplativo, resolveu (e resolve), muitos dos meus conflitos interiores e permitiu-me encontrar o equilíbrio entre uma vida profissional exigente e constritiva, os meus desafios pessoais e o meu ser, expressivo e emocional.

Por outro lado, uma série de circunstâncias de que destaco, o advento da fotografia mobile, a aprendizagem entre pares, igualmente curiosos e generosos e a minha ligação privilegiada a outros artistas e a projectos literários que, no geral, acolhem a fotografia, não como uma mera ilustração, mas como fruto de uma relação simbiótica entre linguagens – sejam elas visuais, sonoras ou literárias –, foram elementos chave que me permitiram, ao longo deste tempo, abrir horizontes, desenvolver uma cultura visual e encontrar um sentido e uma linguagem, para o que cativa o meu olhar.

Começo por esclarecer quem agora chega ao meu trabalho, que, de entre as linhas mestras de exploração visual que me ocupam, assumem particular relevo, a auto-representação e a memorabília do percurso.

Auto-representação: A fotografia faz-me falar na primeira pessoa, mas aspira a tocar o mundo do outro. O exercício fotográfico, quase diário, traduz-se na procura de uma imagem que me represente, me identifique, mas que ao mesmo tempo comungue do mundano e da universalidade, para que toque o outro: só somos, na presença e no confronto com o outro: o que nos define é o que nos distingue do outro. As múltiplas personas que me habitam, vão-se, assim revelando, ao sabor de eventos, sonhados, vividos ou testemunhados e fazem eco de uma realidade não visível que, exteriorizo e revelo ao mundo, sendo que, tanto podem assumir a forma de uma representação do meu ser ou do meu corpo, como de um qualquer outro elemento da natureza ou da criação humana que me sensibilize.

Memorabília do percurso: Confluentemente, enveredo por um testemunho do caminho, do percurso, do processo: um mapa – poético e visual – que conta uma história, muitas histórias, aliás. Por que as imagens, como todos aqui sabemos, podem ter plúrimos significados e nós, podemos acrescentar-lhes ainda mais.

«O que vai ficando é uma espécie de cartografia, um mapa, uma representação do espaço, íntimo e poético, delimitado por territórios, constantes ou passageiros e, condicionado por arrepios de pele, sensações quase tácteis e palavras que ecoam do lado de dentro e se transfiguram noutra linguagem: a da imagem.»

2021, Um ser que posso ser eu, Carla de Sousa

As imagens passaram a ser um código linguístico das muitas paisagens que me habitam.

O que me determina hoje o acto de fotografar ou melhor, de procurar uma imagem é um exercício muito pessoal de múltiplas possibilidades, umas conscientes, outras inconscientes: entre as conscientes, identifico as que são determinadas por um fim ou um resultado; já entre as inconscientes, assinalo as relacionais, sejam estas emotivas, sintonias, sincronias ou disrupções.

O que busco não é uma reprodução do real. O que persigo, na imagem, é a melhor tradução do meu mundo interior, invisível, mas, ainda assim, palpável.” 2021, Um ser que posso ser eu, Carla de Sousa

2. transmutação . territórios

Neste ensaio debruço-me sobre os conceitos de espaço e tempo. Não vivemos o espaço da mesma maneira: aquilo que nos atrai o olhar é, felizmente, diverso quando olhamos ao nosso redor. O tempo é uma unidade que tem diferentes medidas para cada um/a. O tempo não se reconduz às horas, minutos, segundos…, mas às vivências dessas unidades. O meu minuto não coincidirá com o minuto de muitos de vós e a ideia abstracta de medida do tempo é algo que me fascina. As coordenadas espaço/tempo são assim um binómio de múltiplas significâncias.

A partir da imagem desenvolvo várias intercepções, íntimas e eminentemente pessoais, entre o espaço que me rodeia, de que me aproprio com um olhar contemplativo, transmutando-a numa paisagem interior que reflicta o que sinto, ali, naquele momento. Transformar flores caídas e moribundas, num poema; um bosque, numa tempestade; um raio de luz, numa vertigem; o vento, num arrepio; a marca na pele, num mapa; líquenes, numa constelação de estrelas; folhas, num vôo rasante; o cabelo ondulante num mar revolto…

Ao fotografar aproprio-me visualmente do detalhe, da textura ou de um qualquer mundo que vislumbro e imprimo-lhe algo de mim. A paisagem que registo não é a imagem que está perante mim, mas antes a que eu construi a partir dela, como eu a senti.

Ao olhar para estas imagens, poucas serão as que se conseguem geolocalizar, por que elas já não fazem parte de uma geografia do mundo, mas são antes de mais e acima de tudo, uma geografia pessoal.

As minhas imagens contam a minha história interior, revelando paisagens que não existem senão nessa relação, sendo, nesse sentido, autobiográficas. Não querendo com isso significar que correspondam a qualquer acontecimento, real ou factual, do mundo vivido.

A interpretação dessas imagens pelo público pode ser direccionada por auxílio de textos que as acompanham. É importante estarmos conscientes que quando atribuímos títulos ou associamos textos às nossas imagens estamos a condicionar a sua interpretação pelo público. Por um lado, encaminhamos quem vê para um lugar mais próximo da nossa concepção, mas por outro fechamos portas a outras interpretações.

Daí que se debata muito entre nós, fotógrafos e artistas, se devemos ou não dar títulos às nossas imagens/obras. Devo dizer que estou confortável com as duas perspectivas, ciente de que as imagens, contudo, têm vivência e interpretação própria que, a mais das vezes, escapa ao/à seu/sua autor/a. E esse significado plural é o que, a meu ver, as enriquece, por que as torna mais próximas dos outros e das suas próprias experiências.

3. a premissa táctil . topografias

Topografia é definida como “arte de representar no papel a configuração de um terreno com todos os acidentes que tem à superfície”; “descrição exacta e minuciosa de um lugar”; “mapa topográfico”; “descrição anatómica”.

Desenhar num mapa topográfico todos os abismos, planícies e acidentes naturais e/ou artificiais é atribuir-lhes relevo e tridimensionalidade.

Em topografias exploro a relação visual que, de forma inerente, se estabelece entre texturas e a dimensão sensorial associada ao toque. De todos os sentidos, o tacto é, provavelmente, o que mais me fascina e, por isso, amiúde me detenho na busca da sua representação. Todavia, talvez tal propósito seja, mais um sinal de ausência do toque, do que da sua presença.

É, no entanto, esse exercício epidérmico que busco em topografias, como se a imagem nos pudesse tocar e nós a pudéssemos sentir. Sente o que vês é uma premissa táctil de quem observa, contempla, bebe, sorve, toca e se inebria na exploração dos sentidos a partir do elemento visual captado.

A fusão destas possibilidades ou a percepção das suas intrincadas relações entre si, não é, na maioria das vezes, apreensível ou sequer imediatamente visível: às vezes, tais conexões só se tornam inteligíveis na observação ou agrupamento de constelações de imagens que criei, em lugares, modos e condições díspares.

Esta premissa táctil, esta dimensão epidérmica da imagem é um mote que assumo, seja, na primeira pessoa, seja no que me rodeia e envolve: uma apropriação pelo olhar, de uma experiência cinestésica do ser, do outro e do mundo.

Aqui chegada, o meu trabalho, parecendo, à primeira vista, situar-se nos antípodas da fotografia da paisagem, tem com esse género intrincadas ligações, abrindo portas e caminhos ao simbólico, à metáfora e a outras paisagens narrativas.

 

26 de Novembro de 2023, Manteigas, Carla de Sousa

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